sexta-feira, 20 de março de 2009

Memórias de uma Gueixa + Documentário sobre o chá = Conto

Roubo do chá, roubo do coração



Graciosamente enchia as três chávenas de água. Em três dedos, com os restantes elegantemente dispostos, erguia o bule de aia, e criava uma dança hipnotizante entre a água e as chávenas de porcelana, cuidadosamente desenhadas à mão.

O negro escuro de seus olhos, reflectia no verde-claro a água, que se misturava agora com o pó de erva, e, juntos faziam o melhor chá que alguma vez provei.

As plantas chinesas tiveram sempre este aroma celestial, mal sabia eu que as mulheres que crescem na mesma terra que estas plantas tinham também uma beleza do outro mundo.

Ela graciosa como a água que fluía do bule, perguntei-lhe o nome.
-Chay Leng. – disse sem vacilar.
Falámos escassos minutos. Precisava saber mais que isso…
-Tenho que ir servir, saio às cinco.
-Posso esperar por ti?- perguntei eu, hesitando.
-Não deves…

Esperei até o sol se pôr, a noite fez-se e as ruas estavam iluminadas de coloridos balões de papel, pendurados às portas das lojas e cafés. Da porta saiu Chay, como o mais lindo dos balões, branca como a cal, de lábios vermelhos, carnudos como uma cereja no fim de Maio.
-Diz-me Chay, onde aprendeste a fazer chá, A SERVI-LO?
-O chá é a riqueza da minha família, a riqueza da china. Servi-lo é como um culto.

Os seus negros olhos, rasgados, luzidios, reflectiam agora as cores dos candeeiros da ponte. E foi no cimo da ponte, com as amendoeiras pintalgadas de rosa a abrigar-nos, que Chay me revelou a história do chá.

Os chineses sempre tiveram hábitos estranhos. Numa tarde, á cerca de 300 anos, um ancestral de Chay descansara debaixo de uma árvore, trazia consigo um bule de água que fervilhou com o sol. Enquanto dormia, as folhas da arvore mergulharam na água quente. Quando acordou com a sede, sentiu o melhor sabor.
-Desde então cultivou-se, colheu-se, amassou-se, secou-se, escolheu-se e vendeu-se daquelas folhas, folhas de chá - disse ela.
-Os teus pais ainda cultivam chá?
Cultivar chá na China é quase como uma regra de boas famílias, está na família há séculos e assim permanecerá por muitos maias. Fiquei fascinado
-Existem árvores previligiadas, centenárias.
-Que têm de especial?
-O chá,- continuou- foi-nos roubado, primeiro pelos portugueses que chegaram cá de barco, depois pelos indianos, os ingleses, os franceses…Era uma fonte de riqueza, fizeram-se fortunas, e até guerras o chá criou. Um dia apareceu por aqui um inglês, caçador de fortunas…

Não foi o inglês que tornou as arvores especiais. Esse inglês foi a casa da trisavó de Chay, e interessou-se por uma pedra que estava no seu quintal. Perguntou-lhe se a queria vender. A colheita de chá esse ano estava fraca, a avó de Chay ficou contente por poder ganhar dinheiro com uma pedra sem utilidade. Lavou-a bem e deitou a água usada, nas árvores de chá. Vendeu-a. Nunca mais a viu, tomara ela não a ter vendido.
-As árvores ficaram robustas, as folhas tornaram-se suculentas, e, ainda hoje dão o melhor chá de toda a região.

Chay ofereceu-me uma caixa de chá, vindo das árvores especiais, feito por uma rapariga especial.
Não tinha nada de especial para oferecer, nem nenhuma história fascinante. Mesmo por não ter é que não podia perder aquilo que de especial encontrei. Trocámos as nossas moradas, talvez ainda houvessem histórias por viver.

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